terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O começo que lembra do fim.





Há tempos que estou com um aperto no peito. Em Dezembro já vinha o cheiro de Janeiro me atordoar os sentidos. E Janeiro, que deveria cheirar a brisa fresca, grama molhada, ano tinindo de novo, tem cheiro de nostalgia e sabor residual de fim...
Os últimos Janeiros foram certeiros em atirar para longe preciosidades de minha vida. O primeiro desses Janeiros me roubou papai e nunca mais fui a mesma! É, 2007 chegou sorrateiro e levou meu primeiro e mais irremediável amor. Mario Ferrari, meu amigo e "Bom Quixote" predileto, substituto voluntário de colo de pai, não viu nascer o primeiro dia de 2011. Cristiane não despertou do primeiro sono do mesmo ano... E 2012 não foi o fim do mundo, não do mundo todo, mas foi o despencar do meu mundo. Felizmente, essa última história não teve um fim definitivo, doeu, mas teve direito a recomeço, que seguimos escrevendo... E que, espero eu, sem atrapalhos de Janeiro ou qualquer que seja de seus irmãos.
Papai já ganhou um sem número de homenagens, e ainda ganhará outras. Sem contar o fato de que, tacitamente, dedico a ele, todos os dias, o meu mais belo sorriso do dia. Sinto muito a quem me fez sorrir, fique feliz, aproveite, envaideça-se, mas tenha ciência de que, este presente não é só seu. Querendo ou não, ele é sempre compartilhado com meu amado paizinho, Seu "Joãozinho", aquela fofura ambulante, que vai sempre perambular pelos meus sonhos, minhas memórias. Está presente nos meus sorrisos e impresso nas minhas vitórias, inclusive nas que não pôde assistir. Aquela gargalhada gostosa povoa minhas mais deliciosas lembranças, até dos fatos em que não participou... Ele está no meu DNA com todo meu orgulho! Dele herdei meus bens mais caros, a imensa capacidade de amar e a habilidade de envelhecer sem perder o olhar de criança para esse mundão. Dele é muito de mim, mas, deste texto, só esse pedacinho...
Mario recebeu um poema exclusivo em vida, todo carinho, incompreensão, assombro, atenção e encanto que conseguiu depreender de mim. Foi ele quem me fez atentar, numa conversa, para a dor, que até então pouco eu conhecera, de ver tombar pouco a pouco as testemunhas de vida... E me ensinou ainda mais na prática, quando tive de assistir à sua queda. Testemunha de pouco tempo, mas de momentos decisivos... E companheiro de jornada em assuntos que até hoje converso internamente evocando seu nome... Recebeu a tal poesia, e ainda receberá outras homenagens, merecidas, mas hoje não mais que essa lembrança.
O relacionamento que Janeiro último chacoalhou já teve também muitos registros, e terá outros tantos, pela mente, pelo blog e, desejo eu, pela vida, que ao menos ele, além da vida, claro, continua. Esse texto em especial, não é sobre ele também para além dessas linhas.

Esse texto é pra falar de alguém que me acompanhou pela vida afora, que aparte pessoas de minha família, foi quem mais testemunhou de minha história... Minha amiga de mais tempo nessa vida, meu record de amizade... Minha imensa saudade.
Ah! A Cris, posso me lembrar até hoje da primeira vez que nos vimos. Faz décadas (três e mais uns anos, para ser mais exata), e posso ver materializar-se diante de meus olhos aquela menina branquinha com sardas no rosto, de seis anos de idade, olhos curiosos, parada no meu portão. Viu o caminhão de mudanças parando, notou um carro com crianças atrás e logo correu para assuntar. "Vocês vão morar aí?!", perguntou com satisfação visível. Depois entendi a razão, na rua só havia uns moleques bem grossos, uma porção de idosos, uma menina chata e chiliquenta na casa da esquina, e sua única companhia agradável, sua prima Cristina. Então eu e meu irmão éramos um acréscimo na diversão, o que foi lucrativo para todos nós.
Ops! Volta a cena: "Vocês vão morar aí?!" Sim, respondi lisonjeada, surpresa e desconfiada ao mesmo tempo, com toda a minha habilidade social de garota de cinco anos... "Oba! Meu nome é Cristiane, e o seu?!"
Nunca tinha visto uma garota tão cheia de atitude! Estava acostumada a meninas chatas que pareciam de louça... Enfim alguém da mesma cepa! Todo um novo universo surgiu na minha frente. Desta conversa em diante a gente só fez estar juntas todo o tempo que podia. No começo, estudávamos em escolas diferentes, assim foi pelos primeiros sete anos da nossa amizade. Era complicado, aquelas horas de estudo eram prazerosas, sempre foram, sempre amei estudar. Por outro lado, sentia falta de dividir, em tempo real, aquilo que me chamava a atenção com a amiga mais querida. A outras meninas da escola, gostava delas, de alguns garotos também, mas ninguém me conhecia tanto e nenhuma presença era mais especial do que a de Cristiane...
Nesse tempo a gente brincava, e brigava, e compartilhava gostos, e tinha ciúme das outras amigas... Duas cabeças duras, cheias de temperamento, bem marrentinhas. A gente se amava e se "arrancava pedaços" verbalmente quando as vontades não combinavam... Mas era muito amor, daqueles que sempre vencia. Eu, de menina onça, até me deixava ser gatinha mansa, só para acabar logo com a guerra e voltarmos às boas. Pouca gente nessa vida desfrutou ou desfruta desse benefício. Aquela "cabeçudinha" adorável me fazia baixar a bola, pois eu sabia que me cansaria, que perderíamos tempo, pois em teimosia ninguém ganhava dela. Mas, também fui agraciada algumas vezes com a mesma benesse... Não sei de mais ninguém que tenha conseguido.
Brincamos muito no meu quintal, compartilhamos brinquedos, algumas vezes fui visitar seu orgulho, aqueles ratinhos brancos recém nascidos esquisitos e feinhos... Que ai de mim se falasse que eram feios aqueles pacotinhos pelados, rosa translúcidos cheios de veias, que eu ia ver só pra ver a sua cara de felicidade, que nunca que consegui achar graça neles e seus pais com aquelas caudas enormes... Aquelas gaiolas, por mais limpas que fossem, e assim eram, no maior capricho, tinham um cheiro estranho. E meu nariz sempre foi de perfumista e bem enjoadinho... Rato, para mim, ainda que branco, era tudo bicho nojento que não prestava, mas aquela garotinha me fazia quebrar paradigmas...
Nós crescemos e, de tanto atormentar meus pais, consegui ser transferida para a mesma escola; aí é que a gente virou num grude. Era a liberdade e a alegria completas! Não precisava ir mais à escola de ônibus escolar, com toda aquela molecada sem graça, podia ir a pé, feito gente grande, com minha melhor amiga, meu irmão e outro amigo maluquinho... Me sentia já adulta. Pronta para viver fortes emoções quase que como Telma & Louise... Hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaha!!!!!!!!!!!!!!
Num desses dias, minha grande companheira não foi à aula, e não havia dito nada a respeito no dia anterior. Achei estranho, fiquei preocupada. Fui assim mesmo. Quando voltei, foi um dos maiores choques que já tive: passei em sua casa para ver se estava tudo bem. Não estava. Cris estava em coma, glicose a 360. Nunca vou me esquecer do número 360. Um medo imenso, uma incerteza gigantesca tomaram conta de mim, foram dias intermináveis... Acho que não mais de dez, mas, duraram um ano em termos de aflição. Ainda consigo acessar a dor daquela espera. Toda uma vida pela frente, com reticências no meio do caminho... Mas, felizmente, Cinderela acordou. Que alívio!
O diabetes virou companhia nossa. Eu não tinha a doença, mas acompanhei todos os cuidados que se fazem necessários a um portador da condição. Quis saber o máximo de informações de que se dispunha. Muitas vezes assisti a ela se aplicando insulina. Tive de virar vigilante de sua dieta, o que muito a contrariava. Eu era uma menina com meio juízo, mas que tentava cuidar da mais sem juízo ainda... De vez em quando uma briga ou outra, por conta de seu descuido. Sua mãe fazia o que podia para que ela, menina que era, não se privasse das delícias da juventude, das guloseimas, das que podia consumir com segurança. E eram caras, e sim não tinham tantas opções como as convencionais, entendo, mas, eram as que ela podia. Eu, que sempre fui muito severa com transgressões dessa natureza, vivia cabreira com a intransigência da teimosinha querida... E nessas horas, compartilhávamos farpas. E doíam. Doía saber que minha amiga se prejudicava a custo de um prazer efêmero, lícito, inocente, mas totalmente proibido a ela. Senti como o gosto do açúcar pode ser amargo... E novamente os paradigmas em nossa história.
Noutras horas, compartilhamos muitos brinquedos, brincadeiras, segredos. As primeiras emoções da passagem de meninas a jovens moças. A disputa de quem iria usar soutien primeiro. Compartilhamos as dúvidas da puberdade, a curiosidade, os medos. Compartilhamos até o primeiro amor e o primeiro coração partido... Sim, eu o conheci primeiro, era amigo de meu irmão, desenhava, todo falador e popular. Não era bonito, mas era intrigante, instigante, inteligente, qualidades que sempre apreciei no sexo oposto e continuo. Aliás, gente interessante, para mim, é assim...
Fiquei encantada, e claro que apresentei à minha amiga-irmã. Ele me fazia gracinhas, dava desenhos, um dia me convidou para sair. Eu toda eufórica, fui contar a ela que estava gostando de alguém, ela irrompeu num sorriso e disse antes, "eu também, estou gostando de R"... Meu mundo caiu naquele instante. Como eu poderia dizer a ela que também gostava dele?! E pior, como dizer que era recíproco?! Calei meus sentimentos, desconversei, disse que era um garoto do meu curso de inglês, que ela não conhecia... Evitei-o ao máximo que pude, adiei o primeiro beijo tão esperado. Teria assistido feliz ao namoro dos dois, caso ele quisesse... Nunca aconteceu. Ela se declarou, ele não correspondeu. Passamos muitas tardes ouvindo juntas "Sandy", da trilha sonora de Grease, e chorando juntas a rejeição... Chorei o beijo não dado, mas sem o menor arrependimento, não seria capaz de traí-la. Deixei-a pensar que o tal garoto não me quis também...
Lágrimas, risos e uma vida que segue. Impaciente com o meu desinteresse por garotos, ela, que meses depois, já tinha virado a página, me arranja, sem aviso prévio, um "desinfeliz" pra me beijar: amigo do namorado com apelido de bicho nojento - Rato Branco. De novo, ela e os ratos... Teve a brilhante idéia de que eu devia ter um par para não segurar vela. Afe! Beijei tão sem vontade que o sujeito não quis me ver depois - quer dizer, uma vez foi na porta do colégio e eu saí só mais tarde, esperando que ele fosse embora... Enfim paz. Liberdade para beijar quando eu quisesse... Sempre tardia, eu com essa minha liberdade. Quase como a bandeira mineira... Mas a tardia sempre fui eu - liberdade sempre tive de sobra!
Mais tempo, dança da cadeira de namoros, e nós sempre juntas. Posso passar duzentos anos nessa Terra e não vou me esquecer da gente procurando estrelas, deitadas no chão da varanda de sua casa. A poluição de Santo André nunca fora tão celebrada! Ela dava mais emoção à brincadeira. Aquele céu encoberto e a gente lá, procurando estrela, feito agulha em palheiro. E quando achava, vinha o grito da vitória: "Achei! Ali! É minha!" Quantas estrelas será que tivemos?!
Não sei, mas sei do seu brilho, sei do quanto seu sorriso iluminou meu olhar e até o meu mundo... Será que brilha numa delas agora?!
Nunca contei que depois de algum tempo, de muitos beijos, tive um encontro com R e aquele beijo que adiei aconteceu, uma única noite de beijos. Até ia contar, mas depois não aconteceu mais nada, deixei lá no passado distante, deixei essa história morrer no silêncio daquilo que podia ter sido e não foi. No fim das contas, a minha imaginação era muito melhor! Sempre fui boa em imaginar...
Lembro das nossas risadas, das farras com os garotos naquela varanda. Noites de neblina, garoa e risos da "sessão abobrinha". O Sidney me chamando de Cônsul, eufemismo para fresca, e todo mundo se acabando de rir. O maluquinho "encapetado" brincando comigo, a fala com a voz alterada de que até hoje me lembro rindo: "Amor, cadê aquela colher de pau enorme?!" O seu primeiro amor concretizado, aquele que, sempre tive a impressão, nunca passou, só adormeceu pela impossibilidade de prosseguir. O "pai", como o batizou, antes de começar o namoro. Tão lindo quando revelou que pai era disfarce para "paixão"...
Nunca vou esquecer sua paciência com minhas crises de riso, minhas maluquices por excesso de criatividade, feito naquela noite que voltei da padaria com um pudim, fiz tanta palhaçada que disseram que era culpa do "pudim de LSD"... Como a gente era feliz! As matinês na Shunshine, onde a gente se acabava na pista de dança. A sua música preferida, ainda me lembro. Ouço e posso vê-la dançando freneticamente, o sorrisão e as mãozinhas balançando de alegria ao ouvir os primeiros acordes.
Minha festa de quinze anos. Um evento na minha vida que eu queria e não queria. Foi um cumprir tabela, fazer social e realizar o sonho de mamãe. Mas o balanço foi positivo, porquê a gente se acabou de dançar! Me diverti demais no meio daquela caretice toda de dançar valsa, monte de convidados, que era gente que eu gostava, mas era gente demais! Não importava, estava lá minha amiga-irmã, minha turma de amigos e isso bastava, fazia um mundo dentro de outro, um universo paralelo, só meu e melhor.
O tempo é mesmo relativo, e passa depressa quando a gente está se divertindo. Tive de me mudar, 360 quilômetros de distância. Olha só, tinha de ser o número da dor para atrapalhar tudo! Antes de me mudar, fui visitar a cidade uma vez. No caminho todo, céu de Junho, era como se fosse um tapete forrado de diamantes. Fiquei maravilhada com a visão, desejei sua companhia ali para compartilhar de toda aquela beleza que via. Minha mãe, para me animar disse: "Não gosta de estrelas?! Olha só quantas!" E eu, "queixo duro", como dizia papai, fiz questão de responder: Grande coisa! Assim é chato! Que graça tem?! Não é preciso procurar...
A verdade é que a insatisfação era não poder saber qual expressão teria sua face diante de tudo aquilo. Era saber que em pouco tempo muito menos teríamos a dividir.
Um mês depois, a mudança. Contrariada, lá fui eu. Chorava em casa, na nova sala de aula, na rua. Só uma visita aplacava minhas lágrimas, a do carteiro. Trocamos cartas, tantas vezes.
Cheguei a visitá-la dois anos depois da mudança, nesse dia, distraiu meu namoradinho só para perguntar "Ainda tá virgem?" E sim, eu estava. E ela riu de um jeito maroto, que me dizia que ela não. Aquele meneio de cabeça de quem já esperava, afinal, sempre fui a tardia... Não sei a razão, mas me preocupou saber que ela não. Uma sensação gélida me atravessou, pude sentir no corpo, algo estava por acontecer.
Me partiu o coração não poder estar ao seu lado quando seu "paixão" decidiu não mais querer o título. A dor deve ter sido muita, de longe pude sentir que algo murchava em seu interior. Tempos depois as cartas ficaram estranhas, versículos bíblicos. Minha amiga tão cheia de atitudes não tinha palavras próprias, buscava apoio em palavras antigas. Não compreendi, não soube lidar e recuei, não mais escrevi. Perdi o contato. Nunca deixei de pensar, mas não reconheci aquela pessoa, me alimentei das lembranças antigas para manter o carinho.
Alguns anos depois, a visitei novamente. Tinha uma linda menina nos braços, os olhos ainda vivos, mas com um brilho diferente, a menina que conheci deu lugar a uma mulher com papéis e preocupações e uma saúde frágil. Continuava agitada, mais distante das palavras antigas, mais próxima do turbilhão que conheci, mas ainda assim, diferente. Nossas vidas tomaram rumos completamente opostos. E assim se seguiram. A dela, com mais desilusões que a minha. E veio mais um menino, no tempo que já tinha voltado à cidade e morávamos próximas novamente.
O menino nascera com cardiopatia grave, felizmente melhorou depois de tempo, dedicação e uma cirurgia delicada. Nosso contato cada vez mais esporádico. Era muita a sua carga e eu pouco me sentia capaz de ajudar além de ouvir. Não éramos mais meninas, nos tornamos mulheres, com trabalho, contas a pagar, rotina atribulada. A vida seguiu e eu, que fiquei vendo de fora, pouco participei, sinto muito. Nos últimos tempos, só tive notícias pela sua mãe. E notícias ruins, até que chegou a notícia de sua partida, de que só tomei conhecimento depois. Não pude nem dar meu último adeus.
Hoje penso no tempo que poderíamos ter tido juntas. Nas coisas que podíamos ter compartilhado, no quanto fui falha. Mas eu não soube fazer melhor...
Me perdoe, Cris! Eu sempre vou te lembrar. Sabe, as Três Marias, que você sempre gostou de contemplar?! Toda vez que olho, me lembro e sorrio, e esse sorriso dedico a você. É meu sinal de gratidão, pela sua passagem na minha vida. Tomara o brilho do meu sorriso possa te alcançar.
Dia cinco de Janeiro foi seu aniversário, como sempre, claro que me lembrei. Pensei em todas as coisas que você merecia ter ouvido, deixei rolar uma lágrima, depois abri um sorriso. Olhei bem pras Três Marias, dancei sua música preferida e pedi pra Janeiro ser bonzinho daqui em diante, pra ser mês de alegria e deixar eu comemorar em paz o nascimento da estrela mais querida que cresceu comigo.
Saudade, Cris! Brilha daí, que eu reflito daqui.
Brilha daí, que eu brilho daqui e o reflexo dos dois há de se encontrar em algum ponto misterioso do Universo.



Este é meu prolixo resumo de uma longa história de uma vida curta...


Para a minha estrela amiga, Cristiane Czerniak Fernandes e seus filhos Bruna e Gustavo, com todo amor.