sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Não é rosa chiclete, é vermelho ferida exposta, que sangra e dói.

 

   Desde sempre soube que ser mulher dói, dores de todas as formas e tamanhos. As que escolhemos ou nos habituamos e aceitamos até com certa alegria, como a depilação, o soutien, o salto alto, a dieta, as torturas (ops!) tratamentos estéticos, o parto.  Que talvez seja a única que valha a pena, mas nem ela é sempre uma decisão exclusivamente feminina. `As vezes também é imposta.
   Mas existem aquelas dores a que infelizmente não podemos evitar. Essas são as que doem mais, não são aparentes, mas suas cicatrizes estão lá, na alma. Algumas muito antigas, outras recentes, e vez por outra rompem e sangram novamente.
   Elas começam cedo, naquela brincadeira que a gente não pode participar porque é coisa de moleque, no jeito certo de sentar porque menina tem de ter modos e os meninos não podem ver sua calcinha, no seu cabelo que não pode despentear e no vestido que não pode sujar porque você tem de ser a bonequinha da mamãe que tem jeito de mocinha. Aquele palavrão que você não pode gritar na hora da raiva porque aquilo não sai de boca de princesa, e por aí vai. E aos poucos você é ensinada que ser quem é não é bom, que ter vontades não pode. E aprende a aceitar o rosa, a ser fadinha e a continuar aceitando. Aceita que dói menos?! Não, aceita agora que lá pra frente vai continuar tendo de aceitar e vai doer mais, só que aí você já dominará a arte de aceitar que é assim mesmo. E de que é melhor aceitar em silêncio e com um sorriso nos lábios.
   Chegando lá você aceita que pode fazer o trabalho que homens fazem por um salário menor,  que se você não tem um macho não tem valor, e que se você aceitar sem reclamar é mais fácil alguém te querer, e que se ele não te quiser mais, ou te tratar mal, ou te trair, a culpa é sua, o defeito é seu e a errada é sempre você. Que se ele te bateu a culpa é sua, se foi estuprada é porque provocou… Que mulher só é respeitada quando está acompanhada de um homem. Se te assediam acompanhada pedem desculpa a ele, claro. O respeito não é por e nem para você, é pelo seu acompanhante. Afinal, mulher é coisa, então o respeito é pela posse dele, não pelo seu espaço, pela sua pessoa. É por cobiçarem uma coisa que tem dono e que não se havia notado…
   Uma mulher que está só é uma coisa sem dono, e como não tem dono, quem quiser pega. Foi essa a dor que me doeu hoje com força na alma. A dor de ser rebaixada ao status de objeto, uma coisa sem dono que anda sozinha por aí, de não ter direito a ter vontades, a escolher se quero ou não compartilhar uma atitude íntima (Íntima? Com um estranho?!). Ainda tenho de ficar feliz pois não fui estuprada, foi só um homem exercendo seu direito de usar uma coisa sem dono da maneira que desejava, que apenas a queria beijar…
   Parece absurdo nos nossos dias? Parece que a conta não fecha e que há alguma variável estranha nessa matemática que não foi revelada e que justifica o resultado?
   Então, vamos lá `a adição. Adição de desgosto ao meu dia, de mais uma cicatriz a me recordar minha condição e a condição lamentável do mundo onde vivemos…
   O primeiro número nessa soma infeliz sou eu, uma mulher de 41 anos, caminhando pelo centro comercial da cidade, conhecido como o calçadão de Santo André. As variáveis : meus quilos a mais, um vestidinho mamita style soltinho e que cobria até os joelhos, cabelos longos e soltos, uma lista mental de tarefas a cumprir naquele perímetro.
   O que justifica o segundo número nessa quase soma indesejada, em algo que era para ser apenas uma saída rápida para resolver coisas do dia a dia de uma jovem senhora casada?
   A balada para onde fui? As pernas que pouco se revelavam no vestido mid que poderia ser de uma gestante? O batom vermelho que não coloria meus lábios? O decote que não se fazia presente? O comportamento exageradamente provocante de uma dona de casa buscando pelas lojas de cama, mesa e banho? Todas as coisas que aquele infeliz que saiu repentinamente de uma loja e me pegou sorrateiramente pelo braço quando eu apenas tive o desprazer de passar sem sua frente, sequer saberá a meu respeito?! 
   Doeu na alma depois de tudo ter de escutar que ele só queria me beijar, não me tirar um pedaço.Coitado! Como fui injusta! Ainda me dói na alma saber que esse imbecil cuja cara não me lembro, porém que espero se recorde enquanto viver da bofetada que nela levou e da razão de a ter levado, tem direito de andar em paz na rua e eu não. Dói na alma saber que como ele existem tantos outros que acham que podem se aproveitar da fragilidade, ou distração, ou apenas da ausência de um semelhante a nos acompanhar, para tomar a força uma coisa que não tem dono como se isso fosse natural, e como se realmente nós mulheres fossemos coisas. Dói na alma ver que ao redor ninguém se movimenta, defende ou acolhe uma mulher assediada. Nessa hora, no meio de uma multidão como foi comigo hoje, não há ninguém. Ou há apenas uma legião de seres concomitantemente cegos, surdos e mudos cuidando das próprias vidas. Que nem uma mulher se colocou em meu lugar, tanto menos em meu auxílio. Dói na alma ver que não há policiamento ou justiça que nos proteja desse tipo de desamparo. E dói mais ainda saber que não fui a primeira e nem serei a última a passar por essa dor e que sabe-se lá quantas vezes ainda a encontrarei por meu caminho. Dói na alma saber que haveria quem pense que de fato eu não merecia, porque me conhece e sabe que eu me dou ao respeito e não ando semi nua por aí e nem saio sensualizando. Dói porque esse não é o ponto, o ponto é que mulher nenhuma tem que se dar ao respeito, o respeito é que tem de ser dado a ela, sempre!
   Ainda que eu estivesse na balada, isso não daria a sr ninguém o direito de se aproximar se impondo, me pegar pelo braço violentamente e tentar se aproximar ainda mais a para concluir seu intento. Estivesse eu de mini saia, ele poderia? Não! De batom vermelho? Não! De decote? Não! Dançando ou me movimentando de formal sensual? Não! Embriagada? Não! Ainda que eu andasse nua pela rua, ninguém tem o direito de me tocar sem a minha permissão! Ninguém tem o direito de invadir o espaço, o corpo, a vida de ninguém!
     Esse é o ponto onde não cabe reticências, assunto onde não cabe vírgulas e nem mas mas.
   Felizmente me defendi, como pude, como meu instinto de defesa permitiu, o mais rápido que conseguiu. Unhei, bati, intimidei, fui bicho. Me dói pensar quantas de nós pegas de surpresa não conseguem se defender, ficam atônitas e assim o predador tem êxito. Dói.
   Eu não aceito bem o cor de rosa, ele me parece a cor do sangue abrandado pelas lágrimas que choramos tantas vezes em silêncio, eu não aceito esse rosa. Prefiro o vermelho do sangue que me corre nas veias, me sobe `a cabeça e não me permite que a abaixe diante dessas situações. Mulher é bicho poderoso, não esquisito, todo mês sangra e disso não morre. Sangra e segue, e vai em frente apesar das cicatrizes inevitáveis.
   São tantas as dores, as cicatrizes, talvez as minhas sejam menores que as suas…Todas as temos, que tal que todas nos tenhamos também, já que a sua história carrega um pouco da minha, a minha um pouco da sua? Que sejamos umas pelas outras, em defesa umas das outras, para que possamos escolher. Ao invés de cicatrizes de dor, possamos escolher as cores das tintas com que tatuaremos em nossas vidas, em nosso mundo as nossas conquistas.
 

Imagem de Yung Lin Cheng

Mais imagens aqui:  https://www.flickr.com/photos/3cm/15034983941/in/album-72157647366324752/