segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Olhares de estrelas


A menina tinha olhos grandes, negros, do negrume de noite sem lua e agitação de mar revolto, devorador de embarcações... A menina tinha sonhos que não conseguia entender, um sorriso raro, era preciso saber domar cometas para merecê-lo. Era sorriso de ano bissexto.
A menina era esquisita, raivosa como leoa que protege a cria. Tinha uma ira de nem sabia o que, tinha ímpetos, tinha força... A menina era muito esquisita, esquiva, camuflada, camaleoa. Esgueirava-se pelos cantos, só olhava nos olhos quando partia pra luta. Nessa hora, só enxergava vermelho em sua frente, fazia sangue jorrar... No restante do tempo, a menina se escondia, protegia-se atrás da armadura, escondendo seus pés de bailarina e sua delicadeza de hortência recém colhida.
A menina não era como as outras, era esquisita, de uma esquisitice que jamais conhecera em nenhuma outra menina. Queria saber as respostas de tudo, queria ler o mundo pelos seus próprios olhos. Queria cheirar as nuvens, lamber cachoeiras, andar descalça pelas estrelas, saber que som elas faziam na madrugada secreta. Ela usava óculos, que faziam fronteira entre ela e o mundo, e que eram ao mesmo tempo, seu guia através das paisagens nos livros... Ela viajava em histórias, cantava com as sereias, pulava amarelinha na estrada de tijolos amarelos, brincava de pique atrás do espelho de Alice, cabulava aula com Pinóchio, roubava redemoinho de Saci, ninava Emilia com cantos estrangeiros das mil e uma noites, plantava milho com Cora e voava com os deuses em suas naves de astronautas.
Ela, a menina estranha, não era desse mundo, e nem queria ser. Magricela que era, grande e desengonçada, era chamada pirulita chupada. Era caçoada no colégio, pela crueldade que só as crianças têm. Sentia-se uma pedra em meio as rosas, e com dureza de pedra, trancava-se em si, ou atirava-se em ataque. A menina sabia, jamais seria como as outras, mas isso não a ofendia, até a confortava. Não era seu ser cara de todo mundo. Também, jamais seria de mais ninguém o que só ela possuía...
A menina desconfortável, todos os dias dava espaço a uma doçura com hora marcada, que a deixava leve, mais satisfeita do que debaixo da árvore de natal em dia de receber presente. Todo dia era natal, pois, ela possuía um recanto só seu, um recanto onde a menina onça transformava-se em gatinha mansa, lânguida e carinhosa... Todo fim de tarde com o último raio de sol, que ela esperava se apagar, chegava sua estrela mais amada. O sol se punha e lá vinha ele, cansado, mas sorridente. Mal apontava na porta, de braços abertos, a menina onça armava seu bote de carinho e saltava, naquele colo fofo, naquele porto seguro. Era pega ainda no ar, nada precisava temer ou pedir.
Aquele par de olhos doces, serenos, o fitavam com a suavidade de uma brisa de verão, sua voz soava mais suave que um coro de anjos e ela sentia que poderia se derreter ali. Flutuar e volatizar-se, até não mais existir, dissipar-se para o Universo... Aquele era seu Nirvana. Se existe paz, ela se resumiria naquele momento, no sentimento que dele fluía. Naquelas horas, o mundo ganhava colorido, luz, uma melodia mágica. Naqueles instantes, ela se sentia livre, como nem os livros, seu segundo refúgio, jamais o fizeram, nem em sua aventura mais intrépida.
Nunca houvera uma palavra rude, se alguma mais áspera surgia, ele logo a apagava com uma sorriso, uma boa história, uma gargalhada, um cafuné no nariz ou uma sessão de cócegas. Ele era só amor, aceitação e conforto. Era praquele colo que ela corria pra dividir as vitórias, contar as proezas, chorar as tristezas. Ele era sua única testemunha, sabia de suas esquisitices e amava cada uma delas. Aceitava seu desengonço com peito estufado de orgulho, achava graça quando seu moleque de saias ganhava as peleias contra infantes desavisados... A menina ainda lembra das risadas numa arquibancada de sua infância, ele aos risos esperava sua sanha por sangue passar. E depois, mesmo sem poder correr, ia as pressas apartar a briga e se desculpar com os pais das vítimas.
Nas apresentações da escola, ele vibrava mesmo quando a menina fazia papéis secundários e a tratava com a pompa merecida por uma protagonista. Seus olhos brilhavam como farol de navegante. Eram duas, suas estrelas guia. A menina cresceu, sempre esquisita, com seus encantos diferentes dos das outras meninas.
Não entendia direito esse mundo de moças, de moda, de modos, de batom vermelho, de saltos altos... Queria era pular muro, chupar manga no topo da árvore, roubar rosa de praça e debochar do guarda. Ah! Moça menina, ai de ti! Não fosse aqueles olhos, aquele colo, aquela maneira de convencer a não roer as unhas, de ouvir a mãe e vestir a saia... Não fosse a certeza que lhe dava, de que ela seria ela, não importava com que veste, com quantas tintas se pintasse... Não fosse a certeza de que ele a amava e sempre o iria, independente de qualquer coisa e apesar de tudo...
A menina cresceu, aprendeu as artimanhas de ser mulher, usou as pinturas de guerra típicas do universo feminino e encobriu a esquisitice, de maneira a transformar-se até num charme. Foi vista por muitos olhos, cobiçada por tantos outros. Deixou que alguns a olhassem mais de perto. Sentia-se segura, pois estava sempre voluntariamente espreitada pelo olhar de suas estrelas amadas. Nunca abandonou seus dias natal, seus momentos de gata de almofada... Seguiu pela vida sendo ora caça, ora caçadora. Teve seus momentos Diana, teve transformação em Perséfone e depois, como prêmio, conheceu o amor. Foi radiante, tinha agora quatro estrelas, tinha em si a certeza de ser amada. Viveu o amor, transpirou felicidade, banhou-se em paixão. VIVEU. Dez vidas numa só...
Eis que um dia, sem aviso, as estrelas mais antigas, mais caras, se apagaram. Fecharam-se os olhos de seu amado pai, para a escuridão mais injusta de todas. Aquela que não tem volta... O mundo da mulher moça menina se escureceu brutalmente. Ela se virou em buraco negro, devorando a si própria, enclausurando-se em sua dor e levando consigo aquilo que estivesse ao redor.
Os olhos que a observam agora, os seus, nesse momento, devem estar se perguntando: mas, não havia ainda outro par de estrelas? Sim, havia. Duas estrelas que a mulher moça menina muito amou. Mas que, por ser tomada pela escuridão, já não se comunicava bem com elas, não conseguia apreciar seu brilho da mesma forma. Por medo de que o lume apagasse, queria suga-las, aprisiona-las, mas não teve sucesso. Sabe lá que forças, talvez desconhecidas pela física mundana, fizeram com que esse universo se expandisse a ponto de o buraco negro não alcança-las. Felizmente, as estrelas estão salvas, e hão de brilhar em algum ponto, talvez perto, talvez distante...
E a mulher moça menina? Agora, longe de suas quatro estrelas preciosas, paira diante do espelho, tentando desvendar-se. Entender a confiança que tinham os olhares de estrelas nela. Olha, examina, sopra o buraco negro, fecha-o e faz faísca, na certeza de que, um dia, conseguirá acender suas próprias estrelas. E que quando elas estiverem prontas, talvez encontre-se para somar com outras duas, dois faroletes, dois palitos de fósforo ou o que, estiver escrito, no seu céu, com diamantes.
Enquanto isso não acontece, ela joga os cabelos, escolhe a cor do batom, aumenta o som e dança com Lucy. Lucy in the sky with Diamonds.


Esta é para você, meu amado pai, João Jacob, meu eterno doce amor da vida toda. E pra você também, Dê, melhor amor, que um dia a vida me deu, que fez parte dessa história...


Santo André, 23 de janeiro de 2012.
20:20 Hrs

5 comentários:

Anônimo disse...

Nunca mais pare de escrever, dona Mony!

Marcela disse...

Fiquei emocionada. Tudo o que eu disser aqui vai parecer confuso pois digitar com lágrimas nos olhos deveria ser esporte olímpico.
Só consegui lembrar desse trecho de Olavo Bilac:
"E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e e de entender estrelas"
Continua amando, Mony, e assim você não vai perder o contato com suas estrelas, por que o amor é o fio que nos une. Estrelas levam bilhões de anos para se apagar e algumas apenas mudam de lugar, suas estrelas podem estar em outro lugar aguardando ansiosamente o momento em que você, com os olhos repletos de AMOR, volte a enxergá-las.

De Marchi ॐ disse...

Preciosa... :)
Seu pai era mesmo uma estrela. Uma supernova que dissipou-se só pra estar mais em volta de você, te compor e ninar. :)

Duquesa Diaba disse...

Prometi, cumpri! Li tudo e foi escrito de uma forma muito delicada. :)
Bem vinda de volta!

Alexandre Magnos Gomes disse...

=D