terça-feira, 29 de abril de 2008
O que foi, o que é e o que nunca será...
A mutabilidade da vida nos mostra como os tempos verbais trazem consigo surpresas...
Os tempos verbais, o passado, o presente e a idealização.
Sim, a idealização é um tempo verbal, o mais angustiante de todos, o futuro que só existe no campo da expectativa, da ilusão. O futuro que nunca virá. A idéia em estado bruto e irrealizável. O irreal.
Há muitos exemplos da atuação desse infeliz tempo verbal na vida de todas as pessoas... Na minha não haveria de ser diferente...
Hoje coloco aqui um que me deixou pensativa durante os últimos cinco dias. Nem é uma idealização particular, uma vez que foi ensinada desde a infância, creio ser a idealização de uma imensa população de brasileiros... Nem é uma idealização de todo tão irrealizável, talvez, no passado tenha sido bastante próxima da realidade.
O fato foi a visita que fiz com uma querida amiga, uma nova amiga e o motorista que nos levou até uma aldeia indígena em Boracéia, litoral de SP.
O choque de realidade foi brutal, embora já esperado, quase que certamente sabido... E começou antes de a viagem começar.
Mal saímos de minha casa, o motorista nos sugere comprar alguns brinquedos, mimos para as crianças... Algo já me soa estranho e uma pontinha de desilusão começa a dar sinal de vida.
Então quer dizer que os curumins já conhecem brinquedo de "branco"? Gostam de recebê-los como mimo?
Tá, tudo bem. Criança gosta de presente, de brinquedo mais ainda, afinal, criança é criança em qualquer lugar... Mas, fica então a dúvida, eles fazem seus próprios brinquedos? Ainda brincam segundo a tradição de seu povo? Ou será que já se renderam às facilidades da "civilização"?!
Confesso que senti um desconforto tamanho com os meus questionamentos, não com eles em si, mas, nas possibilidades do que eles aventavam serem reais...
Se eram, o mal já estava feito, mas, não me dignei a sair do carro com elas, simplesmente não queria participar desse ato que considerei corruptivo em termos culturais.
Não julgo a atitude dos envolvidos, ambos só pensavam em agradar, mas, cada vez mais, penso que o nosso conceito de agradar nem sempre é o mais adequado...
Começa o trajeto, apelo pro "respira fundo e vai". Não é difícil, no dia a dia, todos nós temos nossos mecanismos de fuga pra suportar aquilo que de primeira (alguma vezes de segunda, terceira e por aí vai) não conseguimos entender, aceitar, digerir... A tarefa foi bastante simples, as companhias eram boas, a paisagem bonita, a conversa fluía, por mais uma hora e pouco me safei, me iludi.
Durou até a última parada antes do destino, pra perguntar se estávamos no caminho certo, uma vez que era uma "estrada de chão". E, pra comprar balinhas pras crianças...
PQP! Açúcar não presta pra ser humano algum! Já os viciaram nesse lixo também?!
Sim, eu sou viciada nessa porcaria que a mim, especialmente faz mais mal do que às outras pessoas, mas, isso é assunto pra outra conversa...
Mas, já os viciaram nesse lixo também?! Essa é outra pergunta que ressoou cá dentro um bocado de vezes até chegar lá...
Não seria melhor presente oferecer-lhes frutas?!
Tá, não disse nada, pequei pela omissão. Não quis julgar ou ser indelicada com minhas amigas. Elas só cumpriram um protocolo que deve ser antigo já...
Afinal, há mais de quinhentos anos de escambo... De que custava aceitar umas balas, um brinquedo em troca de um sorriso, uma palavra, uma fotografia.
Aliás, qualquer mimo vale, um povo tão explorado acabou por aprender a tirar proveito da situação de alguma maneira. Nem dá pra julgar atitude assim... Não mesmo, depois de tudo o que lhes foi tirado...
Bóra pro carro de novo... Mais cinco minutos só, pra mais uma desilusão, aliás, para desilusões em série... A primeira delas já era sabida, embora não aceita completamente... Só mais umas linhas e lá vai.
Chegamos, ponte quebrada, aliás, recebendo reparo. Lá vamos nós aldeia adentro a pé. Uma grande rua em linha reta. Andamos por ela. Lá vem as primeiras ocas. Parte de madeira e palha, parte de alvenaria. Algo entre o retangular com as extremidades ovaladas. Já não era o que esperava, mas...
Umas poucas crianças brincando fora, olhos relativamente espantados, mas nada que causasse alarde. Não paravam de brincar, apenas evitam olhar-nos, alguns pareciam ligeiramente tímidos. Não com a presença de "brancos" em si, mas, com a presença "daqueles brancos" desconhecidos...
Aí vem a decepção n° 1: varais cheios de calças jeans, roupas do dia a dia de qualquer ser urbano...
Não demora nada, decepção n° 2: as crianças vindo da escola, que fica dentro da aldeia, de short e camiseta, calças jeans e sandálias havaianas... Alguns vinham descalços, mas, o traje exatamente o mesmo.
Talvez, se tivéssemos chegado na hora marcada, antes das duas horas de atraso, até houvesse alguma comitiva nos trajes tradicionais, coisa pra turista ver, mas, ali vimos a coisa como é. Ao menos, nesse sentido, tive oportunidade de esquecer para sempre o tempo verbal idealização. Não valia à pena manter aquela imagem das pinturas em museus, das fotografias de livros de escola.
Tá, eu já havia visto isso na TV antes, não vou mentir. Também havia visto na estrada, os daquela mesma aldeia (que já tá parecida com pizza, meio Guarani, meio Tupi), vendendo palmito ali na pista.
Sim, mas confesso, queria encontar a maioria o mais parecida possível com o que um dia foi.
Decepção n° 3: no caminho, dentro da aldeia, vi garrafas pet e embalagens plásticas jogadas no chão... O mesmo chão "Mãe Terra" que eles tanto cultuaram e ainda dizem cultuar (talvez não com o mesmo ardor antigo)...
Não eram tantos objetos quanto já vi em comunidades onde trabalhei. Mas, ali, no tempo verbal da idealização não cabia um que fosse.
Pior foi passar junto de um membro de destaque da tribo que quase pisou em cima, e sequer retirou o objeto do lugar ou mencionou algo sobre aquilo...
Chegamos à escola, onde encontramos nosso guia. Ainda estava posto o almoço das crianças, uma comida tão igual à qualquer outra de qualquer lugar. Arroz com carne moída e salada...
Tudo bem, provavelmente a prefeitura local é quem fornece. Mas não seria possível fornecer uma dieta saudável mais próxima à cultura desse povo?! Pq tudo tem de ser tão desvituado assim?!
Decepção n° 4: chegamos ao nosso guia, não vi nele e nem nos outros ao redor o mínimo traço de altivez indígena. Vestes vulgares, postura curvada, tão massacrado quanto qualquer outro trabalhador braçal que se vê num ponto de ônibus.
Não se trata de beleza física, nem de traços étnicos. Trata-se de postura corporal e vocal, de brilho no olhar, de segurança no próprio existir, de conexão com o ambiente onde vive, do saber do mundo ao redor, de seus iguais. Tudo muito frágil...
Me espanta a falta de resistência, de reivindicação.
Fomos à "casa de reza", o nome já foi corrompido também, mas, deixa pra lá... São séculos de dominação cultural. O cheiro era bom. Algo que enfim parecera mais legítimo do que tudo o que vira até então...
Não que o restante não fosse, até era, só que pela metade, fora do tempo verbal natural, do passado e igualmente fora do tempo verbal da idealização... Tudo deve ser observado diante da conjuntura atual, mas, é difícil, quando pensamos no povo que é a referência viva mais "primitiva", "selvagem" que conhecemos...
O cheiro, os vestígios da fogueira estavam ali, bem junto ao tapete gasto e sujo de terra que poderia ter saído da sala de qualquer um nós. Ali houve música nativa, cantada sobre o som de violão, outra corruptela dos colonizadores... Algumas explicações superficiais voluntárias, algumas perguntas que fiz com igual superficialidade respondidas. Algumas observações com cujas quais obtive instantânea concordância com meneios de cabeça, sem o menor questionamento ou contestação...
Duas coisas me fizeram feliz ali, saber que ao menos acontecem ali reuniões periódicas pra o povo discutir suas necessidades, estabelecer metas, praticar e passar adiante o que resta da sua cultura, e ver que minha amiga que tanto aprecia a Mãe Terra e as culturas indígenas, viu, ali sentiu alguma magia... Bem que tentei, mas só senti o vazio do que foi sem deixar rastro, do real sentido daquilo que espero esse povo ainda sinta...
Mais um pouco de passeio, ouvi boas notícias, que esse povo faz reflorestamento de palmito, tem seus próprios tanques de peixes, seus viveiros. Que trabalham para que a área onde vivem, daqui a dez anos, volte a ser como foi antes, para que os pássaros retorne e a caça também. Me alegrou saber que a escola lá dentro funciona bem, educa em idioma nativo, português e outras matérias, até inglês (que já não sei se acho bom...). Que os jovens vão à faculdade e depois têm a obrigação de retornarem à cominidade, para trabalharem por seu povo, reproduzirem o conhecimento que receberam. Boas novas enfim!
Depois foram as picadas de mosquitos, ver minha amiga comentar que sentia certo incômodo em estar ali, como se tivesse "ido ao circo ver os palhaço", o desafio à própria vergonha em distribuir as balas, dar os brinquedos...
Pior foi o que percebi na conversa, quando disse ao índio que gostaria de lá ficar uns dias, num próximo retorno ao Brasil. Perguntara sobre que danças eles faziam, a resposta foi "depende do período do ano", sim, até aí entendo, por conta das celebrações sazonais, as festividades mudam de acordo com os ciclos lunares e por aí vai... Mas a decepção n° 5, foi a pior de todas, foi ouví-lo dizer que na próxima visita, é só dizer "que dança quer ver e eles fazem".
Não é o circo, nem são os palhaços, mas, não deixa de ser um show encomendado... Com direito a marcar data por celular e tudo.
Agora vêm as decepções finais, não sei se maiores ou menores, ficou tudo tão sem medida... Terminado esse tour, fomos à casa de nosso guia, conhecer, comprar artesanato. Chegando lá, me deparei com uma enorme antena parabólica, obviamente lá dentro havia uma TV (se bem que ele já havia falado que há horários para todos verem TV, há regras na tribo, para manter a ordem. Lá ao menos parece que funcionam.). Outras surpresas pelo chão, a que mais me chocou foi uma mangueira aberta com água jorrando à vontade.
PQP! Fala-se tanto em não desperdiçar água. Essas campanhas passam na TV! Eles nunca viram?! E ainda mais na casa de um líder, que seria referência para os demais?!
Outra surpresa, as crianças desembrulharam as balas, tiraram as embalagens dos brinquedos e tudo ficou ali mesmo pelo chão.
Uma coisa seria jogar no chão sobras de frutas, de alimentos naturais, outra coisa é papelão e plástico. pra quem já foi tão perjudicado pela devastação do "branco", falta consciência para cuidar do espaço que lhes cabe...
A casa é interessante, não vi geladeira, mas, eles têm fogão à gás e também à lenha. Não um ambiente coletivo, cada casa com seus utensílios e objetos.
Redes?! Não, beliches. Paredes escuras, com aspecto de pouco cuidado e parca limpeza...
Gostei de ver as sementes de palmito do lado de fora, na carriola, que jamais imaginei serem daquela maneira. Aliás, sempre achei que o palmito fosse planta rizomática... Ao menos aprendi algo, e mais umas palavras que já me esqueci...
Comprei lá uns brincos de penas, cuja haste é dessas que se compra em lojas de bijouteria da Ladeira Porto Geral... Mas são bonitinhos, valem como lembrança e como ajuda à família.
Hora de voltar, mais uma surpresa, pegamos carona até o carro, na kombi que levaria nosso guia a transferir seu título eleitoral, juntamente com alguns jovens em idade de adquirirem os seus.
Sim, pq o "silvícola" que sabe comunicar-se em português tem direito a voto. Na vida social, infelizmente, é tão cidadão de segunda classe quanto a grande maioria sofrida do nosso povo, mas, o voto deles vale o mesmo que de toda gente. E sempre há quem se interesse em angariar os deles...
Da carona gostei da música vinha do rádio, que era música feita por eles mesmos, de um CD que por coincidência, tenho aqui em casa. Música, que percebi, foi o que conseguiram preservar melhor de suas raízes... Ainda que não totalmente, mas, está salva.
Gostei da despedida, do olho no olho e da satisfação que vi no líder, ao perceber nos que partiam o verdadeiro interesse pela sua cultura. Na expressão admirada ao dizer que éramos os primeiros visitantes que conheciam alguns rituais e palavras de sua etnia. Pela primeira vez a satisfação em ser quem se é.
Dizem que os Corubos são bárbaros, que não aceitam sequer a presença de mebros de outras tribos, entretanto, devem ser eles os índios cuja cultura mantem-se mais preservada dentre todos os de nossso país...
Dessa visita ficaram em mim os questionamentos, algumas respostas, muitas desilusões e a certeza que o desapego é o único caminho... Que o tempo verbal da idealização não se concretiza além da decepção. melhor é a realidade, seja como for.
A viagem foi produtiva em aprendizado e uma delícia pelas companhias, pelas conversas, pelas risadas e pelo desejo satisfeito (de quem mais merecia).
Ah! Maria, liga não pra o meu ponto de vista, que feliz é aquele que consegue ver magia em tudo, assim como tu, que já és a própria magia. Já sou feliz só por poder ir no rastro desse perfume.
Hoje eu ia falar de burocracia, IR e sei lá mais o quê, mas, isso não é um arquivo cronológico. Minha alma fala o que quer.
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4 comentários:
PQP!
Post grande ninguém lê! :(
Quando resolvo sair do meu autismo voluntário e falar a respeito do que há do lado de fora, silêncio total...
Hunf!
Minha querida, eu li sim, e fiz em papel uma resposta quase tão grande quanto o teu post... mas achei melhor não postar. Porque racionalizar e ponderar em cima de um desabafo é maçante demais e eu ando cansada dessa minha atitude para com as outras pessoas. Se vc quiser, em algum momento ao vivo e a cores conversamos sobre o assunto.
Deixo então apenas um comentário. O que foi, o que é e o que nunca será... Já pensou que talvez parte da tua expectativa nunca foi? Dentro da nossa idealização, muitas vezes tb idealizamos o passado...
Beijo
Karin
Esse foi imenso! Mas não comentei antes porque só consegui entrar hoje!
Quando estivemos na Bolivia, foi a mesma coisa. A agência nos vendeu um pacote com direito a passar uma noite na ilha flutuante de Uros com os nativos do local. Disseram que teria cerimônias e tudo o mais. A agência local desencontrou e largou a gente as 17:00 na ilha. Fomos recebidos por uma nativa que ficou o tempo todo nos atazanando cobrando pela estadia (que já estava paga). Nesse horário já estavam todos enfurnados em suas cabaninhas de totora assistindo televisão via parabólica. Quando descobriram que nosso colega de viagem tinha trazido alguns brinquedos pras crianças, uma multidão veio para a nossa cabana e cinco minutos depois desapareceu. No dia seguinte, outra decepcão: a comida deles chegava de barco, tudo industrializado e muitas garrafas de coca-cola! Tremenda decepção...
Tocante, Mony... eu até imaginava que vocês encontrariam os famosos 'shorts com havaianas', mas... Cá entre nós, pra mim virou piada, não há mais índios ali, são favelas mal sustentadas pelo assistencialismo da consciência pesada, que quer salvar o defunto no dia da exumação.
Cacique Kleberson, de cabelo carapinha e Nokia no bolso? Nem.
Que integrem logo esse povo antes que as madeireiras o façam.
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